Reportagem escrita por: Joyce Campolina, Larissa Antunes e Lui Pereira

Quarta-feira, 05 de novembro de 2025

10 anos do rompimento da Barragem de Fundão

Há exatamente uma década, a Barragem de Fundão, de propriedade da Samarco, localizada em Mariana, se rompeu e despejou cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeito que percorreu cerca de 660 km pela bacia do Rio Doce até chegar no Oceano Atlântico. 10 anos após o maior desastre-crime socioambiental da história do Brasil, nós fomos ouvir as histórias de alguns atingidos das cidades de Mariana e Barra Longa. Seus relatos serviram de base para a criação desta reportagem especial.

O dia que a vida parou

Há dez anos, em 5 de novembro de 2015, a rotina dos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana, o distrito de Gesteira e a cidade de Barra Longa, foi interrompida pelo rompimento da Barragem de Fundão. Esse evento trágico resultou em 19 mortes, incluindo trabalhadores da mineração e membros da comunidade de Bento Rodrigues, o primeiro local atingido, cerca de 20 minutos após o incidente. O rejeito percorreu os cursos do Rio Gualaxo do Norte, do Rio do Carmo e toda a extensão do Rio Doce até o Oceano Atlântico, onde chegou 17 dias depois.

O desastre destruiu comunidades inteiras, soterrou aproximadamente 100 km de matas ciliares e deixou centenas de milhares de pessoas sem acesso à água potável. Além disso, causou prejuízos significativos nos setores pesqueiro, agropecuário e turístico. A tragédia alterou profundamente a relação entre comunidades ribeirinhas e tradicionais, incluindo indígenas e quilombolas, com o rio. De forma permanente, também modificou a discussão sobre os riscos inerentes ao modelo de mineração vigente.

Uma década após o ocorrido, nosso objetivo é entender os resultados do processo de reparação até o momento e as perspectivas futuras para essas comunidades.

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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

A lama e o caos

O dia 5 de novembro de 2015 foi quente e ensolarado. Em Bento Rodrigues, a diretora da escola municipal, Eliene Geralda dos Santos, descreve o dia como "comum, né? Tudo ia bem, tudo dentro normalidade". Dentro da escola, protegida por muros altos, a diretora não percebeu a tragédia que se desenrolava na rua. "A gente não ia conseguir perceber nada se meu marido não tivesse ido lá na porta da escola avisar a gente", pontua.

Quando o aviso veio, a reação foi caótica em uma corrida desesperada pela vida, pois o tempo se esgotava.

Todo mundo saiu correndo, não tem esse negócio igual a mídia colocou muito, todo mundo foi bonitinho, juntinho com os professores, não. Cada um correu para onde achava que tinha que correr. Eu mal consegui salvar nem a mim mesma, como eu vou conseguir salvar alguém numa hora dessas? Nessas horas é cada um por si mesmo.
Eliene Geralda dos Santos, diretora da Escola Municipal de Bento Rodrigues
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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

Pablo Henrique Fialho dos Santos, que hoje trabalha como comerciante no Novo Bento Rodrigues, tinha apenas 15 anos e estava na escola quando a lama chegou: "Tinha um ônibus lá fora, a gente conseguiu colocar os mais velhos dentro e em coisa de 5 minutos, acabou o Bento todo. Rápido, muito rápido", comentou.

A comerciante Darlisa das Graças Eusébio Azevedo, proprietária do Bar da Una, estava dentro de casa, descansando, quando o pânico se instaurou. "Eu escutei, sabe, umas gritaria, choradeira no meio da rua afora. Eu tive aquela curiosidade, né? Fui abrir a janela de casa para ver o que estava acontecendo. Aí a menina foi e gritou comigo: 'Sai de casa que a barragem estourou', foi só a conta de eu abrir a porta e sair. Nem chinelo não deu tempo de eu pegar". Já Rosa Maurília, hoje com 94 anos, relembra o “barulhão” e o sofrimento de “ter que correr demais” para fugir da lama.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Quatro horas depois, já era noite quando a lama atingiu Paracatu de Baixo. Waldir Pollack, produtor rural, recorda a forma brusca como foi alertado para deixar sua casa: "Disseram: 'Você tem cinco minutos para sair daí. Senão, vão embora junto com a lama. Roupa a gente compra outra, agora vida não tem jeito'. Então entramos na caminhonete, pegamos apenas o dinheiro e os documentos", relata.

A professora Angélica Peixoto conta que, apesar da comunidade estar alerta aos avisos da Defesa Civil, o momento em que a lama chegou foi aterrorizante. "Era impossível ver qualquer coisa; só deu para ouvir o barulho, que era horrível", descreve.

A lama trazia consigo uma sensação de destruição total. "E, também um fedor muito forte, um odor, sabe? Muito… Sei lá, uma coisa que entrava pelo nariz que incomodava muito... Eu fiquei com a sensação que seria um cheiro de enxofre... É uma mistura assim de um cheiro ácido mesmo", lembra.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Em Barra Longa, na sede do município, a lama levou cerca de 12 horas para finalmente chegar. Essa demora, no entanto, longe de ser um alívio, transformou-se numa cruel ilusão que, no fim das contas, não fez senão multiplicar o desespero e amplificar a perda. O atual prefeito, Elson Magnata (PP), relata que o rompimento da barragem ocorreu por volta das quatro da tarde, mas a onda de rejeitos só atingiu o município na calada da noite. “Ela chegou às 4 da manhã praticamente dentro da cidade”, detalha, marcando o momento em que a tranquilidade foi violentamente substituída pelo caos.

A falsa crença de que a lama não causaria maiores estragos foi, ironicamente, um dos fatores que mais contribuíram para o cenário de destruição. Evandro Trindade de Freitas, comerciante local, lembra com clareza que, apesar dos alertas iniciais, a Samarco e as autoridades locais transmitiram uma segurança enganosa. “O rio não vai sair do leito", repetiam.

Naquele momento crítico, a maior autoridade militar em Barra Longa era um sargento, encarregado tanto da Segurança Pública quanto da - inexistente - Defesa Civil. Evandro relata que, após o rompimento, subiu o leito do Rio Gualaxo ao lado do militar, “até a ponte das Corvinas”. De lá, observaram o rio, que parecia apenas um pouco mais alto e barulhento. A informação oficial da Samarco para eles era reconfortante: o rio subiria, teria um aumento no volume, mas tudo ficaria bem. A credibilidade dada a essa informação foi tanta que, segundo Evandro, o próprio sargento, que residia na Praça Lino Mol, acreditou piamente. “Ele não tirou um móvel dele e perdeu tudo", conta.

Foi Andreia Ferreira, também comerciante e esposa de Evandro, quem testemunhou o momento aterrador do avanço da lama na calada da noite. "Na verdade, essa lama chegou aqui na madrugada e nós ficamos alertas o tempo todo", relembra. Foi ela quem alertou o marido sobre a chegada da lama: "Ela me liga: Evandro, vamos! A lama chegou! Aí que nós fomos”.

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Foto: Andreia Azedo

A lama não chegou discretamente. Invadiu a cidade de forma "grandiosa" e com um "fedor de óleo e a mistura de tudo que veio junto", destruindo tudo o que tocava. Este horário da tragédia (a madrugada) confirmou o pior medo de muitos, como Darlisa e outros atingidos de Bento, que acreditam que se tivesse sido à noite ou de madrugada, em sua localidade, teria sido ainda pior: "Misericórdia, não sobraria nada não. Eu não estaria aqui hoje para contar a história".

Se a corrida pela sobrevivência já era aterradora por si só, a incerteza sobre a vida dos entes queridos constituiu uma dor particularmente dilacerante, que para muitos representou o "pior dia da vida". Luciene Maria da Silveira Alves, comerciante de Bento Rodrigues, viveu horas de uma angústia indescritível.

Chegaram a falar que a minha menina tinha morrido. Aí foi muito sofrimento, né? Eu fiquei até 10 horas da noite achando que a minha menina tivesse ido embora na lama.
Luciene Maria da Silveira Alves, comerciante de Bento Rodrigues

E o sofrimento era mútuo. Ela relata que sua filha, na época com apenas 13 anos, tomada pelo desespero, chegou a cogitar o suicídio por acreditar que a mãe e o pai haviam morrido.

O rompimento da barragem não levou apenas bens materiais, mas apagou memórias insubstituíveis. "Os álbuns que eu tinha, dinheiro nenhum nesse mundo paga. É uma das coisas que eu sinto muito de ter perdido", compartilha Luciene, que viu desaparecer para sempre as fotos da filha e do seu casamento, lamentando que essas recordações “vão só ficar nas lembranças mesmo”.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

A professora Angélica Peixoto, de Paracatu de Baixo, descreve a perda de itens insubstituíveis, que representavam a memória e a história da comunidade: "As fotos, nada... Não sobrou nada. Simplesmente desapareceu. Eu tinha umas fitas guardadas. Uma era a minha mãe cantando, que já é falecida hoje... e a minha sogra contando histórias também. Então isso era era um arquivo assim muito precioso que ficava guardado, né? Não sobrou nem vestígio", lamenta.

Para Joelma Souza, cozinheira que hoje mora no Novo Bento Rodrigues, a data ficou gravada a fogo em sua memória. “Dia 5 de novembro foi um dos piores dias das nossas vidas, né? Foi o fim de uma história que a gente não tem como voltar atrás”.

Dirlei José Madalena, domador de cavalos de Barretos, distrito de Barra Longa, resume a brutalidade daquele dia: "Desde o dia que a lama chegou aqui, era meia noite, foi uma destruição total e nós ficamos arrasados". Ele conclui que, após a tragédia, a vida "nunca mais foi a mesma".

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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

Preconceito e destruição social

O rompimento da Barragem de Fundão causou mais do que uma devastação ambiental: desintegrou o tecido social das comunidades atingidas. O deslocamento forçado da população desencadeou um processo de diáspora que aprofundou o isolamento, fragmentou laços comunitários e expôs os sobreviventes a situações de preconceito.

A transição abrupta de um modo de vida rural e coletivo para a realidade dos reassentamentos em áreas urbanas alterou as dinâmicas sociais consolidadas por gerações. De uma hora para outra, famílias que viviam em casas com quintais e áreas comuns se viram confinadas em apartamentos na cidade de Mariana, um ambiente que impôs barreiras físicas e simbólicas à sua antiga convivência.

O processo de mudança para os novos distritos representa outro ciclo de adaptação. Nesse novo contexto, marcado pela desestruturação dos laços sociais e afetivos, e pela memória do que foi perdido, as relações interpessoais e a própria identidade comunitária enfrentam um longo e complexo processo de reconstrução.

A fragmentação do convívio

O maior impacto social dessa “diáspora”, foi o fim da intimidade e do apoio mútuo que definia as comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. A diretora da Escola de Bento Rodrigues, Eliene Geralda dos Santos, narra a dificuldade de gerenciar a vida escolar quando a comunidade se espalhou por Mariana: "Um grande desafio para a gente foi isso de ir para Mariana e cada menino morar num bairro diferente. Então, estava todo mundo muito longe da gente. As famílias ficaram espalhadas por Mariana".

Ela ressalta a forma como a distância transformou a relação familiar e comunitária: "O menino passava mal, na mesma hora, assim, 5 minutinhos, você já tava com esse menino na casa dele... Agora o menino tá passando mal na escola, mas a mãe tá lá no Rosário, a mãe tá lá no Colina, né? É muito difícil".

Essa dispersão foi combinada com a mudança forçada do ambiente físico. Pablo dos Santos, explica o choque de sair da vida simples de distrito para o ambiente urbano: "Apartamento é um trem mais fechado, né? Não é igual a gente morava lá que era aberto, você podia sair e andar, né?". Em Mariana, a sensação de isolamento era intensa, “quem você vê é estranho para você".

Joelma Souza lamenta a perda das tradições familiares que mantinham a união, a convivência, que "não é a mesma mais". A realidade do novo distrito contrasta com o passado, onde a família se reunia e "cada neto levava um doce" para as festas. Luciene Alves reforça essa perda, mencionando que só via seus vizinhos e amigos em reuniões, chegando a ficar "mais de 4 anos sem ver" um vizinho querido.

A dispersão também teve custos físicos e emocionais dramáticos. Luciene relata que sua mãe, Maria da Penha, sofreu muito com o emocional e algumas lesões após o rompimento. A idosa permaneceu acamada por quatro anos até falecer: "Ela sofreu muito na cama após o rompimento. Acho que também é muito emocional, né? Estar num lugar que não era a casa dela".

Rosa Maurília também nunca se sentiu em casa enquanto morou em um apartamento em Mariana. A idosa relatou sua insatisfação no período e a melhora de seu bem-estar ao se mudar para o reassentamento. Na época do apartamento "eu vivia sempre sentindo alguma coisa, eu não gostava de lá não, porque era um lugar apertado e não tinha jeito de você andar, né? E eu gosto de liberdade para andar, plantar minhas flores”. E acrescenta: "Depois que eu vim ‘pra’ aqui, graças a Deus tive até mais saúde".

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Apesar de gozar de boa saúde, Dona Rosa lamenta não poder compartilhar da nova vida com familiares que, infelizmente, morreram enquanto aguardavam a mudança para a nova comunidade.

Sempre tem umas coisas que aborrecem a gente, né? Eu perdi a minha irmã ano passado. O meu genro morreu lá no apartamento ainda, não conseguiu receber a chave da casa dele. Meu cunhado também morreu lá em Mariana. Então, a gente tá alegre, satisfeito com o lugar, mas perdeu bastante, né?
Rosa Maurília, atingida de Bento Rodrigues

Em Barretos (distrito de Barra Longa), o produtor rural Dirlei José Madalena exemplifica a diáspora extrema. Hoje, ele mora em Mariana e percorre 106 km todos os dias para cuidar de sua terra, enquanto seu pai, que foi "nascido e criado" na comunidade de Barretos, não retorna há mais de um ano. Desgostoso com a destruição e a falta de convívio familiar, ele afirma que a tragédia "distanciou as famílias, (...) distanciou tudo".

Ouça:

O estigma “atingido”

A migração forçada para a sede de Mariana expôs muitos atingidos a um ambiente de hostilidade e preconceito. Em pouco tempo, parte da população local passou a vê-los não como vítimas, mas como responsáveis pela crise econômica que se seguiu à paralisação das atividades da Samarco.

Eliene Geralda dos Santos descreve a rotulação que afetou crianças e adultos. Segundo ela, os alunos da escola que recebeu provisoriamente sua comunidade escolar "ficavam chamando os meninos da gente de ‘da lama’. ‘Ó, os da lama, ó, os da lama’. (...) Acabou que a gente, que é vítima, ficou como culpado de tudo mesmo, do que aconteceu na cidade", relata, referindo-se ao período em que a crise econômica motivou parte da população a direcionar a culpa aos desabrigados.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

De acordo com Eliene, essa hostilidade ainda se manifesta em perguntas "desnecessárias" sobre indenizações, o que tem levado alguns atingidos a esconder sua condição em público. Ela cita um episódio em um salão de beleza, quando uma pessoa perguntou: "Ah, você também pegou aqueles milhões?".

O constrangimento gerado pela exposição de suas decisões no processo de reparação foi um dos motivos que a levaram, junto com a família, a optar pelo "reassentamento familiar" e permanecer morando em Mariana. A escolha foi feita, em parte, para evitar ser rotulada "o tempo inteiro de atingida", como ela temia que acontecesse no Novo Bento, local visto como "a comunidade dos atingidos".

Já Luciene confirma a percepção distorcida de que todos os residentes do Novo Bento estariam milionários e relata que o preconceito atinge até a dignidade básica. "É aquela coisa, as pessoas achando que tá todo mundo milionário. [E há] julgamentos maldosos, palavras maldosas, julgando a gente por uma coisa que na verdade não é. A realidade é outra", desabafa. A comerciante ainda menciona ter ouvido que a comunidade deveria cuidar da casa "porque senão vai virar um chiqueiro, que nem era antes".

O meu maior índice aqui hoje é o de psiquiatra. Então, a minha fila de psiquiatria aqui é muito grande. Toda semana o médico não dá conta de atender a fila toda.
Elson Magnata, prefeito de Barra Longa

Sérgio Papagaio, morador de Barra Longa, um dos líderes dos garimpeiros e editor-chefe do Jornal A Sirene, corrobora com a afirmação ao dizer que muitas pessoas estão tomando ansiolíticos devido ao estresse e à contaminação do rio.

A professora Angélica Peixoto, da Escola Municipal de Paracatu de Baixo, relatou o desespero inicial das crianças, que "não entendiam o que estava acontecendo" e estavam com "muito medo" de "não ter para onde ir". A sensação de descaracterização era tamanha que as crianças tinham muita dificuldade em se reconhecerem, até porque as roupas também não eram delas. Elas estavam com roupa de doação.

Profissão atingido

Além do custo social, o processo de reparação pelos danos do rompimento da Barragem de Fundão se transformou em uma batalha burocrática exaustiva. Para serem reconhecidos, os atingidos precisaram assumir uma nova e árdua função, a de "atingido profissional".

Sérgio Papagaio, líder dos garimpeiros, sintetiza essa realidade. Ele conta que ele e outros moradores tiveram que "aprender a ser atingidos", em uma jornada que já dura dez anos sem trégua, quando a produção incessante de documentos tornou-se condição essencial para obter uma reparação justa. Papagaio enfatiza que a reparação não beneficia quem é passivo e que grupos que não "produziram documento", não se organizaram ou “não tiveram fé" foram os que saíram em desvantagem no processo.

A batalha pela reparação justa foi marcada pela desconfiança e por obstáculos impostos pelas empresas responsáveis.

A Samarco e a Renova complicavam os processos, chegando a exigir comprovantes impossíveis para muitas famílias, como uma conta de luz de 2015.
Sérgio Papagaio, líder dos garimpeiros e editor-chefe do Jornal A Sirene

Na mesma linha, Dirlei denuncia que agrônomos contratados para reparar os danos nas propriedades rurais, teriam colhido assinaturas dos atingidos para usar esses documentos com o fim de "roubar direito" e cortar benefícios já acordados, como o fornecimento de silagem para o gado, que teria sido cortado antes do plantio de novas capineiras.

Darlisa exprime a fadiga generalizada com o ciclo infindável de reuniões. "Não tenho mais paciência para essas reuniões", afirma, por sentir que "a população não é ouvida". Ela observa que, frequentemente, apenas quem "grita mais" e recorre a protestos consegue chamar a atenção.

A percepção de injustiça no processo exigiu uma vigilância constante das comunidades. Para Eliene, a Fundação Renova não aplicava um critério único, criando uma distribuição de benefícios que parecia um "sorteio". A falta de transparência e os conflitos gerados pela disputa por recursos fizeram Papagaio concluir que a Fundação Renova não foi criada para reparar o crime, mas para dificultar o pagamento e criar conflitos internos nas comunidades.

A Renova foi criada para fazer o trabalho dela. Fez muito bem-feito por sinal... Vieram para não pagar, para não reconhecer, para criar um estado de entropia, para jogar vizinho contra vizinho, para jogar pai contra filho, marido contra mulher.
Sérgio Papagaio, líder dos garimpeiros e editor-chefe do Jornal A Sirene

Existe nas comunidades uma sensação de desigualdade ao tratar de problemas similares causados pelo rompimento da barragem. Eliene cita a diferença de valores e direitos: "O critério que ela [Fundação Renova] usa para te indenizar não é o mesmo que ela usa para me indenizar, sabe? Não é o mesmo". Ela questiona a justiça dessa disparidade, quando "você sofreu o mesmo que eu, né? Você passou pelo mesmo que eu, mas você ganhou 10 vezes mais que eu. Que justiça é essa?", pontua.

Reassentamentos

De acordo com a Samarco, no documento “Avanços da Reparação de Prestação de contas do Acordo de Reparação Bacia do Rio Doce - Edição de 3 de julho de 2025”, estão concluídas as obras de 388 imóveis, incluindo moradias, comércios, sítios, lotes, bens privados (associações, igrejas etc.) e 22 bens públicos, como escolas, postos de saúde, cemitérios, praças e sistemas de tratamento de água e esgoto. Ainda de acordo com a mineradora, “as últimas construções de residências e equipamentos públicos estão em fase final e continuarão sendo desenvolvidas com participação ativa das comunidades e dos atingidos, de acordo com padrões globais de reassentamento”.

O processo de reassentamento foi coletivo na maior parte dos casos. Além da construção de casas nos novos distritos de Paracatu e Novo Bento Rodrigues, as famílias atingidas podiam optar pelo reassentamento familiar, quando são realocadas para locais fora dos novos distritos. Caso as famílias não tivessem o interesse nas duas modalidades de reassentamento, era facultado o direito à pecúnia.

Após a repactuação, todos os casos não resolvidos via reassentamentos, foram encaminhados para solução via pagamento em dinheiro. Permanecem em execução seis imóveis adicionais, definidos pelos moradores do Novo Bento Rodrigues posteriormente ao acordo homologado pelo STF em novembro de 2024.

O processo de reparação, conduzido pela Fundação Renova (e agora pela Samarco), especialmente no que diz respeito aos reassentamentos, é amplamente criticado. Pesam sobre as empresas, críticas não só sobre a lentidão e má qualidade das obras entregues, mas também por ter “destruído as relações sociais”, através de critérios desiguais e opacos nas comunidades.

Em Barra Longa, a reparação aconteceu de um modo diferente ao de Mariana. Cada cidade contou com o apoio de uma Assessoria Técnica Independente (ATI) - para Mariana a Cáritas e para Barra Longa a AEDAS (Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social) -, para apoiar as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão. Além disso, cada município pertence a uma Vara de Justiça diferente, o que proporcionou a adoção de critérios distintos em cada caso.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Em Mariana, os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, tiveram seus reassentamentos coletivos de Novo Bento Rodrigues e Paracatu construídos. Havia a previsão de um terceiro reassentamento coletivo, em Gesteira, pertencente a Barra Longa, porém ele ainda não saiu do papel.

A primeira casa em Novo Bento Rodrigues começou a ser construída em 29 de julho de 2019, com previsão de finalizar as obras das casas em 27 de agosto de 2020. Mas a primeira chave do distrito de Novo Bento Rodrigues só foi entregue no dia 27 de abril de 2023.

De acordo com Luciene Alves, que foi a primeira moradora de Bento Rodrigues a pegar a chave da nova casa no reassentamento, a motivação para sair de Mariana, depois de tantos anos, era ter uma casa novamente em sua própria comunidade. “Foi muito doloroso, né, quando a gente teve que ficar essa distância longe das pessoas que a gente gostava. A gente gosta do pessoal da comunidade. Então, o que motivou que eu vim, foi porque a comunidade é aqui, a minha comunidade de Bento é aqui, então eu tive que vir”.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

A vida no Novo Bento

Luciene afirma que Novo Bento jamais será como sua antiga comunidade. Originada no século XVIII, Bento Rodrigues era uma comunidade tradicional, permeada por história, cultura, tradições e identidade de seus moradores. “Porque é um lugar que você morou praticamente a vida inteira. Então, aí agora a gente tá começando tipo do zero, né? Começando, né, num lugar que a gente tem que acostumar que é aqui que é o nosso lugar. Mas o antigo Bento, ele era muito gostoso, era um lugarzinho tranquilo, sabe? Muito gostoso mesmo, né? Então, sinto falta de tudo lá, tudo”, lamenta.

Darlisa, proprietária do Bar da Una, lembra do antigo distrito com um modo de vida tranquilo e aconchegante, no qual a comunidade tinha união e senso de pertencimento, diferente de Novo Bento. “Lá era uma união, sabe? Que as pessoas tinham. Agora o novo aqui, o reassentamento, ‘tá’ todo mundo distante um do outro, né? Pouco a gente vê os vizinhos”, relata.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Pablo Henrique, também tem o sentimento da perda de um senso de coletividade na comunidade. Para ele, a volta do time de futebol, Unidos de Bento Rodrigues, foi essencial para que um pouco do contato retornasse. “A gente perdeu o contato com muita gente, com vários amigos, né? Aí uma forma da gente se aproximar de novo foi a volta do time de futebol, o Unidos de Bento Rodrigues. Aí foi algo assim, que fez a galera se aproximar, se reencontrar de novo”, explica.

Pablo acrescenta ainda que sair de Mariana para voltar a morar próximo de sua comunidade melhorou sua vida.

Novo Bento não é igual ao antigo, mas é melhor do que Mariana, né? Porque aqui você tem liberdade, você sai, você vai na casa do outro, conversa, vê os outros na rua. Mesmo a gente morando muitos anos lá, não é igual para a gente que gosta de roça assim, não é a mesma coisa.
Pablo Henrique Fialho dos Santos, comerciante no Novo Bento Rodrigues

Darlisa também conta sobre fatores durante o processo de reparação que agravaram esse distanciamento. Segundo ela, os reassentamentos e as indenizações não aconteceram de forma justa. “Tem muita gente aí recebendo esse dinheiro da repactuação sem fazer nada, sem ter tido nada, entendeu? Enquanto a gente lutou, a gente trabalhou e o nosso ‘tá’ agarrado até hoje”, conta.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Eliene Geralda dos Santos Almeida, diretora da Escola Municipal de Bento Rodrigues, optou não pelo reassentamento coletivo, mas sim pelo familiar, residindo atualmente, junto com sua família, no bairro Dom Oscar, em Mariana. Mesmo assim, o acesso às obras era controlado e ela só podia visitar em momentos específicos, “com EPIs, com o engenheiro. Tinha que ir acompanhado por eles”. Porém, ela revela que, em “dia de domingo, dia de sábado, que eles não estavam mexendo na obra, a gente acabava entrando. E aí a gente via as coisas que eles estavam tentando fazer de errado e a gente já brigava, né?”, conta.

Para Eliene, a qualidade das obras do reassentamento são questionáveis em relação aos materiais utilizados e à forma como elas foram realizadas. Ela suspeita de que essa má qualidade seja intencional. “Não sei explicar porquê, não sei que benefício que eles tem atrás disso, não sei que dinheiro é esse que rola, mas tudo que você relata, tudo que nós relatávamos, tudo que a comunidade de Bento relatava em relação à casa, era sempre um ‘não se preocupe, tem garantia, não precisa se preocupar, tem garantia de tantos anos e tal’, mas parece que já vai fazendo para você acionar a garantia. Já faz errado. Para justificar esse desvio de dinheiro, que a gente sabe que desvia muito dinheiro, né? Então assim, eles já faziam errado, fazia mal feito, justamente para a gente acionar a garantia”, denuncia.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Rosa Maurília, moradora de Novo Bento Rodrigues, se mostra satisfeita com sua casa no reassentamento, após morar por muitos anos em um apartamento em Mariana. “Eu senti foi muita alegria, porque lá no apartamento, eu sempre vivia com as pernas inchadas, vivia sempre sentindo alguma coisa. Depois que eu vim pra aqui, desde o primeiro dia, parece que eu já morava aqui há muito tempo”, comemora.

Apesar disso, Rosa Maurília relata alguns problemas em sua casa, como uma trinca no muro do canteiro do seu jardim que traz alguma preocupação. “A gente não entende direito, mas se preocupa né? Eu já mostrei essa trinca pro pessoal, mas ainda não resolveram, o ideal seria se viessem arrumar logo, porque tem o prazo da garantia, né?”, questiona.

A reparação em Paracatu

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Em Paracatu, Romeu Geraldo de Oliveira, líder comunitário e proprietário do Mercado da Praça, também reclama sobre problemas observados após a entrega do seu imóvel.

Quem vê de fora, a casa bonita assim, não sabe dos problemas que acontecem. Vira e mexe a gente tem que reclamar de alguma coisa nova que aparece.
Romeu Geraldo de Oliveira, líder comunitário e comerciante em Paracatu

Waldir Pollack, agricultor familiar de Paracatu de Baixo, continuou morando no mesmo terreno atingido e teve sua casa reconstruída no local. Ele afirma estar satisfeito com a reparação feita em sua propriedade, que foi invadida pela lama, formando uma deposição que chegou a aproximadamente cinco centímetros de altura. “Na minha opinião, a vida das pessoas melhorou muito. Agora, quem perdeu gente da família, aí é diferente. Nada paga isso. Mas quem perdeu só os bens, recuperou tudo”, comenta.

Ele aponta que, através de análises feitas por pesquisadores de universidades, foi possível afirmar que o rejeito que passou por suas terras não afetou a qualidade dos alimentos que ele produz. Mas a atual preocupação de Waldir é o isolamento da comunidade: “Minha vida melhorou muito depois de tudo isso. Só que uma coisa que é complexa é que, em Paracatu, quem eram meus vizinhos, passaram lá pra cima, são 7 km daqui lá”, considerando que o senso de comunidade se perdeu ao longo do tempo, distanciando as pessoas e não só de forma física.

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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Apesar do contentamento com a vida que leva atualmente, Waldir Pollack relata que suas vendas caíram pela metade se comparado ao período antecedente ao rompimento da barragem. Tendo acompanhado todo o processo de perto, Pollack diz que “a reconstrução não é fácil, até hoje a gente tem reflexos disso. Aqui tinham dez pessoas trabalhando. Então, depois disso, a gente não tem mais essas pessoas, essas pessoas moravam tudo aqui, agora estão todas morando em outros lugares”, lamenta.

O agricultor teme o fim do processo de reparação e questiona como a vida dos atingidos ficará após as empresas encerrarem o processo de indenização dos atingidos. “Existe uma interrogação nisso: Até quando as empresas vão bancar muita coisa que eles ‘tão’ bancando hoje?”, questiona.

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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

O encerramento do processo de reparação não preocupa apenas Waldir. Para Eliene, “a nossa questão é: já que tem 17 anos para pagar essa indenização, alguém da família vai poder pegar esse dinheiro dessa indenização? Esses juros que esse dinheiro vai render, ele vai ser repartido também ao longo desses anos? Tem tantas questões que não tem resposta. E aí fica aquele tanto de gente lá, né, no topo decidindo a vida de quem está cá embaixo aqui, mas só decide de forma que prejudica a gente. Só prejudica.”

O caso de Gesteira

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Segundo o comerciante Celso Xavier, proprietário de um posto de combustíveis e morador de Barra Longa, “a Renova está praticamente saindo, né? Mas ‘tá’ saindo sem entregar muita coisa, pelo menos o que foi prometido", considerando que a reparação estrutural nas moradias foi insuficiente. Celso afirma que há casas com rachaduras, quintais ainda cobertos por lama e áreas inteiras que não foram limpas. A parte baixa da cidade, próxima ao leito do rio, continua, segundo ele, com trechos cobertos por rejeitos e mato plantado por cima, uma tentativa de esconder o problema: “Eles limparam esse pedaço, mas dali pra baixo ‘tá’ com lama ainda. Jogaram um mato lá pra tampar, mas tem lama ainda”.

O morador também aponta que o distrito de Gesteira, um dos mais atingidos, “acabou”. “Gesteira não tem ninguém. Pouca gente mora lá. A comunidade era uma das maiores de Barra Longa. Hoje você vai lá, não tem ninguém. Gesteira nunca mais vai ser a mesma, nunca mais. Gesteira acabou”, se entristece.

A comparação com Mariana evidencia as diferenças nos processos. Enquanto lá houve a construção de novas comunidades planejadas, em Barra Longa o cenário foi de abandono e de precariedade. “Lá no Bento fizeram as casas todas, fizeram a estrutura toda, rua, tudo. Aqui não fizeram nada. Gesteira tá do jeito que tava. E, ao que parece, não vão fazer”.

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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

No dia 30 de maio de 2023, a Justiça Federal homologou um acordo de R$126 milhões destinados à reconstrução, recuperação e relocação da comunidade de Gesteira, distrito de Barra Longa. O acordo é o desdobramento de uma ação civil movida pelo MPF contra Samarco, Vale, BHP Billiton, Governo Federal e Estado de Minas Gerais.

Dentre as medidas do acordo que previa a concretização do processo de reassentamento do distrito de Gesteira, estavam inclusos: definição da nova localização para o reassentamento, aquisição da área selecionada, elaboração de projetos urbanísticos e de engenharia, implantação de infraestrutura, elaboração de projetos arquitetônicos, construção de imóveis, reassentamento de edificações de uso público, demolição de estruturas remanescentes, negociação coletiva, acompanhamento das obras. O acordo também previa o repasse de R$57 milhões para urbanização e demais obras.

Foram assinados dois acordos: um para garantia das indenizações, urbanização e implantação de um fundo da comunidade, e outro com o município de Barra Longa e com o Consórcio para o Desenvolvimento do Alto Paraopeba (Codap), junto com o Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (Gepsa) da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG).

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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

Em março de 2025 foi realizada uma reunião com a comunidade de Gesteira. O intuito foi discutir o Acordo Coletivo de Gesteira, que reconheceu o direito ao reassentamento da comunidade atingida. O objetivo da reunião era esclarecer dúvidas e atender as demandas da comunidade em relação ao Acordo da Repactuação e discutir a retomada das atividades do Acordo Coletivo de Gesteira, que estavam paralisadas desde a mudança de gestão municipal.

Em julho deste ano, membros do Quilombo de Gesteira protestaram contra a exclusão da comunidade no Programa de Indenização Definitiva (PID). Apesar de o acordo firmado em 2023 prever R$8 bilhões para comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, o Quilombo de Gesteira não foi incluído.

O prefeito de Barra Longa, Elson Magnata, explica que a única verba da Renova que permanece em conta é justamente sobre o acordo de Gesteira, pois foi depositada no BDMG e homologada com o Codap, o que não ocorreu com os demais repasses.

Barra Longa e a luta por reparação justa

Após o rompimento da Barragem de Fundão, Barra Longa foi transformada em um verdadeiro canteiro de obras. As ruas, antes tranquilas, passaram a ser tomadas por caminhões, tratores e máquinas pesadas que transportavam lama, entulho e materiais para as obras emergenciais. Esse intenso trânsito acabou deixando marcas profundas na estrutura da cidade, não apenas simbólicas, mas físicas.
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Foto: Andreia Azedo

As casas antigas começaram a apresentar rachaduras e trincas, consequência direta da vibração causada pelo tráfego constante de veículos de grande porte. Em várias residências, as fissuras aumentaram com o tempo, e os moradores relatam que até hoje os imóveis seguem danificados, sem reparos definitivos. “Hoje existe essa situação dessas trincas, porque teve muito caminhão pesado, muita pedra que disseram que eles vinham trazendo para conter o rio”, conta a comerciante Andréia Azedo.

Para Andréia, o calçamento histórico faz parte da identidade de Barra Longa e também foi bastante afetado. As pedras irregulares, removidas e recolocadas às pressas, deixaram o piso desnivelado e frágil. Segundo os moradores, as ruas estão hoje cheias de remendos e buracos, dificultando o trânsito e comprometendo a segurança de quem anda a pé e de carro.

Eles começaram o serviço muito maluco de mexer nesse calçamento da cidade, cidade antiga. Tirar aquele calçamento e pôr um rolo compactador para bater perto de casa velha. E com isso o nosso calçamento não voltou mais ao normal.
Andréia Azedo, comerciante de Barra Longa

Para Evandro de Freitas, esses problemas se somam às cicatrizes ainda visíveis na paisagem urbana: casas parcialmente recuperadas, muros rachados e áreas onde o solo continua cedendo. A sensação, para quem vive em Barra Longa, é de que o processo de reconstrução ficou pela metade. “Mesmo com o novo acordo federal envolvendo a reparação, há incerteza sobre o futuro. As pessoas me perguntam assim ‘ah você acha que isso vai ficar mais quanto tempo?’ Assim não sei, com esse acordo agora, que foi feito esse acordo federal, o jeito que foi feito se a Samarco vai sair fora né? Porque, para ela passar o dinheiro, é muito mais fácil do que ela assumir as obras, né? Muito mais fácil para ela. É muito mais cômodo”, afirma o comerciante.

A Fundação Renova destruiu a nossa casa

A história de Dirlei José Madalena, um domador de cavalos do distrito de Barretos, é um testemunho vívido do desarranjo causado pelo rompimento da barragem, marcado pela persistência em manter seu modo de vida rural, apesar das injustiças e da "correria" diária que se tornou sua nova rotina.

Dirlei José Madalena, nascido e criado na região de Barretos, tem uma ligação profunda com a terra. Sua paixão e sua vida se baseiam nas atividades do campo: "O que eu sei é mexer com gado, com criação, com terra, com fazer cerca, cuidando dos animais e é assim que a gente leva a vida aqui". Ele também cuidava de vaca de leite, chegando a tirar 500 litros por dia.

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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

A chegada da lama, em novembro de 2015, devastou sua propriedade, que fica a 50 metros do rio, passando por todo o seu quintal. Além de destruir a pastagem, a lama levou os animais, incluindo uma égua que ele e seu pai amavam, que "morreu aí com a lama". O gado que sobrou também morreu, porque ficou "com fome, com sede d'água".

Ele lamenta a perda da comunidade unida que existia ali. Gesteira, povoado bem próximo de Barretos, foi "demolido pela lama". Dirlei lamenta, pois hoje "acabou tudo. Hoje você não vê ninguém".

A reparação conduzida pelas empresas foi, para Dirlei, um ato de destruição e abandono. Em 2018, a Fundação Renova propôs reformar sua casa. Ele e sua família, que também teve que se mudar, aceitaram, e seu pai e irmãs foram para Mariana, pois Dirlei prometeu permanecer por 30 dias na roça, para cuidar dos animais, morando provisoriamente no curral.

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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

Contudo, segundo Dirlei, no processo de reforma, a Renova derrubou a casa ao perceber que não daria para reformar. A alegação era que, já que a casa não daria condições de reforma, eles dariam continuidade à construção de uma nova. Enquanto sua casa era demolida, o caso teria sido judicializado e, sem casa, ele foi forçado a permanecer no curral, onde ficou por muito tempo.

Fiquei morando no curral por seis anos. E se quisesse fazer qualquer coisa, tomar um banho, fazer qualquer coisa, tinha que usar o mato, você entendeu?.
Dirlei José Madalena, domador de cavalos de Barretos, distrito de Barra Longa

A promessa da nova casa nunca saiu do papel. Hoje em seu sítio, permanecem as ruínas do que sua família já chamou de lar. Dirlei lamenta que seu pai, idoso, "desgostou daqui" e já faz "um ano e pouquinho que ele não vem aqui na roça", onde viveu a vida toda.

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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

Cansado da falta de apoio e assistência, Dirlei conta que, certa vez, ele se revoltou, chegou a trancar veículos da Renova em sua propriedade, exigiu solução, mas os liberou em seguida, por orientação do advogado. Ele resume sua experiência: "Isso é a reparação que a Renova tratou de fazer e não cumpriu".

Após seis anos vivendo no curral, Dirlei mudou-se para Mariana e hoje mora com a família no bairro Rosário. No entanto, sua vida não é na cidade: "Eu não tenho vontade de sair daqui [da roça] não. Eu tenho vontade é de melhorar o trem mais".

Para manter-se ligado à sua paixão, ele se submete a uma rotina exaustiva: "Eu saio de Mariana às quatro horas da manhã e eu volto daqui para Mariana às cinco horas da tarde. Aí vou chegar lá quase às sete horas da noite. No outro dia, às quatro horas eu saio de novo para cá. É só correria o tempo todo". A distância total de ida e volta que ele percorre diariamente é de 106 km. "Minha vida aqui hoje aqui não tá boa não... Chega aqui e chega já cansado para começar a trabalhar", lamenta.

Seu pai teria recebido uma indenização para a construção de uma nova casa, um valor, segundo Dirlei, insuficiente para a reconstrução. “O custo para contratar um pedreiro em Barretos, considerando os 106 km de deslocamento, faria a diária dele custar quanto? Uns 500, 600 contos todo dia?", questiona.

Dirlei demonstra profunda "raiva dessas empresas" (Vale, Samarco, BHP) e do tratamento diferenciado que o município de Barra Longa recebeu, comparado a outras comunidades, como Bento e Paracatu.

Ele foi forçado a aceitar a indenização, sem o direito de optar por ter sua casa reconstruída, porque, segundo ele, o método da Samarco/Renova é "ou tudo ou nada". Dirlei critica a injustiça, na qual "gente que não perdeu nada recebe aí 3 milhões e eu que fui atingido... só pego 500.000 ou nem isso, só pego 100.000". Ele reforça que as empresas não dão justificativa e só fazem "trapalhada e destruição".

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As ruínas da casa de Dirley servem como lembrança da violência sofrida - Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

A reparação, segundo ele, não está sendo transparente, pois exige que os atingidos "provem o que tinha", mesmo que a lama tenha levado tudo. "Eu moro a 50 metros do rio... Eu tenho que provar alguma coisa para Samarco, pra Vale, pra Renova? Não preciso provar nunca", revolta-se

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O Rio Gualaxo do Norte passa a 50 metros da antiga casa da família - Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

Apesar de tudo, Dirlei é um "resistente" e se recusa a deixar a roça. Se sua casa estivesse pronta, ele "acordava e dormia aqui". Ele se mantém com a esperança de que "as coisas melhorem" e continua na luta para que a sua vida no campo não acabe e para que a justiça finalmente seja feita.

Expectativas, transformações e a luta pela sustentabilidade

O rompimento da barragem, em 2015, não apenas arrastou casas e poluiu os rios, mas desintegrou a dinâmica econômica e social das comunidades atingidas. Para comerciantes e empreendedores, a tragédia inaugurou uma era de perdas, adaptação forçada e incertezas, obrigando muitos a se reinventarem para sobreviver em um novo contexto.

A vida econômica nos reassentamentos e na cidade de Barra Longa sofreu mudanças profundas. Em Bento Rodrigues, Joelma Aparecida de Souza, que tinha uma lanchonete no distrito original, conseguiu se reinventar após oito anos em Mariana. Começou o restaurante "Cantinho de Minas" em casa, com 20 marmitas. O negócio expandiu para um ponto comercial no Barro Preto por três anos e agora, prepara a inauguração de uma filial no Novo Bento Rodrigues, com previsão de abertura "até o final do ano".

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Luciene Alves abriu a "Feirinha da Lu" há cinco meses, onde vende frutas, verduras e legumes. Ela implementou um serviço de delivery gratuito para moradores com dificuldade de locomoção, como Dona Rosa Maurília, tornando-se um apoio vital para a comunidade. Já Darlisa Azevedo, que tinha um bar, transformou seu estabelecimento em um restaurante, que atende a comunidade local, mas também, principalmente funcionários das construtoras e demais empresas que trabalham na reparação.

Darlisa relembra com saudade a forte coesão da comunidade original, perdida no reassentamento, contrastando com a realidade atual de distanciamento. O modo de vida aberto foi substituído por uma rotina de isolamento, na qual a própria Darlisa, uma comerciante ativa, se sente sozinha: "Na hora que a turma vai embora (os trabalhadores das construtoras), aí eu tenho de entrar para dentro de casa para não ficar só", revela.

O distanciamento é tanto físico quanto social, atingindo até mesmo laços familiares próximos, o que demonstra a dificuldade em reconstruir o convívio.

Eu tenho primos aqui que depois que eles vieram para cá e eu vim para cá, eu ainda não vi eles. Não vi. Não conheço o Bento ainda, não sei, não andei nesse Bento aqui ainda.
Darlisa das Graças Eusébio Azevedo, proprietária do Bar da Una
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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

A comerciante expressa um forte desejo de reavivar a vida social e econômica do distrito através de eventos, mas reconhece que o esforço não pode ser unilateral: "Eu, se depender de mim, se dependesse só de mim aqui, eu estaria fazendo meus eventos de final de semana, né?".

Apesar de ser capaz de idealizar a movimentação ("eu fecho os olhos, eu imagino uma festinha aqui. Você pensou? Todo final de semana"), ela enfrenta obstáculos que a impedem de realizar esses planos. O transporte até o distrito, mais frequente quando era realizado com a van da Fundação, hoje conta apenas com um horário, o que a impossibilitou de continuar com suas funcionárias, que moravam em Mariana. Essa falta de acesso dificulta ainda mais a execução de seus planos. Darlisa argumenta que o Novo Bento tem potencial turístico e deveria ter mais visitantes: "Se dependesse só de mim…".

A principal fonte de angústia de Darlisa reside na incerteza do futuro econômico. Seu restaurante, embora seja um "belo bar" e bem-sucedido, foi construído e é mantido majoritariamente pelo fluxo de trabalhadores das empresas da reparação: "Hoje meus maiores clientes ainda são os trabalhadores, são os operários das empresas".

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

A possibilidade de esses trabalhadores irem embora é um medo constante que ameaça a sustentabilidade de seu comércio e de sua recém-conquistada estabilidade. "Depois que essas firmas forem embora, não sei o que vai ser de mim aqui. Eu penso muito o dia de amanhã. O que que vai ser de mim depois que essa firma for embora? É isso que eu penso, porque não sei se a gente vai continuar, se vai dar certo".

Essa dependência é tão grave que, quando os trabalhadores partirem, ela espera um impacto imediato no movimento. Apesar da satisfação por ter conquistado sua casa e seu negócio, a ausência de uma base econômica interna estável impede que sua felicidade seja completa. "Estou feliz assim, mas não por completo, né?”. Além disso, com a pouca disponibilidade de transporte, qualquer emergência exige pagar um carro para ir a Mariana, o que pode custar de R$80 a R$90. O distrito, apesar de precisar seguir um ordenamento urbano, está isolado de Mariana.

Apesar de elogiar a estrutura do reassentamento, Darlisa aponta dificuldades no acesso à saúde. “Aqui tudo é na emergência lá em Mariana. Se precisar, tem que pagar um carro, e não temos farmácia, só um posto de saúde com médico três vezes na semana”.

Isolamento e o esvaziamento produtivo em Paracatu

Na zona rural, produtores como Waldir Pollack enfrentam consequências estruturais. Apesar de sua propriedade em Paracatu de Baixo ter sido atingida por “apenas uns 5 cm" de lama, e as análises do solo não apontarem contaminação severa, o impacto social foi devastador.

Antes da tragédia, Waldir empregava até dez pessoas em sua produção de orgânicos. Após o reassentamento da comunidade para um local mais distante, o produtor ficou isolado. Hoje, ele trabalha sozinho: "Achar alguém para trabalhar tá difícil", comenta.

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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Waldir reconhece que a vida de muitos melhorou financeiramente com as indenizações. No entanto, essa melhoria material não compensou a desagregação do tecido social. A produção e o convívio foram profundamente afetados, evidenciando que o senso social de comunidade foi muito afetado".

Não é só Waldir Pollack quem se preocupa com a questão da sustentabilidade.

O distrito está muito vazio, [e] aqui não tem emprego, o dinheiro não gira, falta alguma ocupação ‘pra’ manter as pessoas mais ligadas ao novo distrito.
Romeu Geraldo, comerciante de Paracatu
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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Romeu hoje comanda sua mercearia, junto com a esposa Iracema, onde, além de itens de primeira necessidade, consegue vender pastéis com relativo sucesso. No entanto, a sustentabilidade de seu negócio enfrenta entraves burocráticos: sem um cômodo adequado, Romeu não consegue o alvará sanitário para retomar a fabricação de sorvetes, atividade que sustentava a família no antigo distrito.

A produção e comércio do sorvete traria uma vantagem estratégica Com várias comunidades rurais próximas, Romeu teria facilidade para entregar rapidamente seu produto na região, e não dependeria totalmente do movimento do próprio distrito para alavancar as vendas. "Eu poderia vender sorvete para esses distritos todos próximos daqui", lamenta, preocupado com a viabilidade do negócio no distrito pouco populoso.

Angélica e Cíntia, da escola de Paracatu, confirmam que a relocalização eliminou o emprego local (como o cafezal antes existente justamente no terreno onde foi construído o novo distrito) e que a escola, que antes tinha cerca de 100 alunos, agora atende apenas oito. Eles temem que a comunidade não consiga convencer os moradores que estabeleceram vidas em Mariana a voltarem para um local sem emprego.

Em suma, as histórias de comerciantes e produtores rurais uma década após o desastre ilustram um paradoxo: conquistas individuais, como novos imóveis e negócios, convivem com a fragilidade econômica, a injustiça na reparação e o rompimento dos laços comunitários.

A reconstrução material não foi suficiente para restaurar a sustentabilidade e o sentido de pertencimento que definiam essas comunidades.

Crise estrutural e os calotes

Em Barra Longa, único município com a sede atingida pela lama, a situação se mostrou particularmente complexa. Os comerciantes Evandro Trindade de Freitas e Andreia Ferreira, donos de uma loja de materiais de construção, enfrentaram uma batalha extenuante. A lama invadiu o local onde eram guardados os estoques de itens pesados, como cimento, cal, madeira e ferragens.

O processo de indenização foi marcado pela injustiça e morosidade: a empresa só aceitou ressarcir os produtos com nota fiscal em estoque no dia do desastre, ignorando itens vendidos. Além disso, a indenização dos produtos perdidos veio seis anos após o rompimento e sem correção inflacionária. “Na época do rompimento um saco de cimento eu vendia a 15 reais, hoje por exemplo, eu vendo um saco de cimento no balcão por 40”, explica Evandro.

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A lama destruiu todo o estoque de materiais pesados da loja de Andréia e Evandro - Foto: Andreia Azedo
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Foto: Ana Beatriz Justino/Agência primaz

A logística da loja tornou-se um pesadelo. Com o depósito interditado por mais de um ano, Andreia e Evandro precisaram armazenar parte do material em contêineres e lotes separados, fragmentando suas operações e dificultando o aspecto logístico. E para recompor o negócio, ele "teve que comprar tudo de novo", mesmo descapitalizado, pois já tinha injetado na loja todo o dinheiro que tinha.

Os comerciantes de Barra Longa foram duramente afetados pelos danos da lama, mas também pelos subsequentes problemas causados pelas empresas contratadas para a reparação, que resultaram em grandes calotes. Celso Xavier relata que duas empresas terceirizadas da Renova/Samarco deixaram prejuízos substanciais. Após dois meses de fornecimento de combustíveis e lubrificantes para uma empresa, e mais um mês para outra, o prejuízo total somou cerca de R$60 mil.

Evandro estima que suas perdas totais, decorrentes dos calotes das empresas terceirizadas em sua loja, são superiores a R$60 mil também. Ele e Andreia relataram terem vendido materiais para uma dessas firmas que deu o calote, e Evandro menciona que isso aconteceu em proporções que afetaram "quase que Barra Longa toda".

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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

Quando os comerciantes buscaram a Samarco para questionar sobre o problema, a resposta foi de negação de responsabilidade. As empresas simplesmente "lavaram as mãos", alegando que não tinham "vínculo jurídico" com as terceirizadas, e que a responsabilidade era exclusiva do contato entre os comerciantes e as firmas.

Os comerciantes, no entanto, argumentam que o dever de reparação era da Samarco, que terceirizou essa obrigação. Logo, a responsabilidade deveria recair também sobre ela. A situação é vista como "muito estranha" e suspeita, especialmente porque as firmas contratadas ostentavam o nome da Samarco/Renova para ter crédito na cidade. Além disso, os comerciantes alegam que o processo deveria ser mais criterioso, considerando a capacidade financeira das empresas contratadas.

De acordo com Celso, uma das empresas que aplicou um calote expressivo em Barra Longa já havia dado um calote anterior em Mariana, mas foi recontratada para trabalhar no município. Essa mesma empresa fechou (entrou em recuperação judicial), o que leva os comerciantes a suspeitarem que essa manobra visava justamente evitar os pagamentos. Diante da recusa administrativa, os comerciantes se uniram em busca de justiça.

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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

Evandro acredita que os critérios para a contratação das empresas que deram o calote no comércio local, não tiveram o mesmo rigor de quando ele tentou habilitar sua construtora para realizar obras para a Samarco na cidade. Evandro tinha uma construtora que, entre outras coisas, foi a responsável por realizar a última reforma da Igreja Matriz de São José de Botas antes do rompimento.

Devido à perda de contratos, ele precisou praticamente fechar a empresa e por isso viu na reparação uma oportunidade para se manter no negócio, com interesse em fazer parte do trabalho de reparação no município.

Evandro tentou fazer obras para a Samarco, especificamente obras pequenas, já que sua construtora tinha cerca de 40 funcionários na época. Ele realizou o cadastro junto à Samarco, forneceu toda a documentação solicitada, como certidões, certificados e provas de sua sustentabilidade econômica e fiscal. Ele pediu uma oportunidade, mesmo que fosse apenas para fazer "uma casinha de cachorro", e se o serviço não agradasse, eles não precisariam contratá-lo novamente.

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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz
Apesar de toda a insistência e da documentação completa, a construtora de Evandro não conseguiu obter nenhuma obra. Em vez de dar a ele trabalho em construção civil, a Samarco/Renova chegou a oferecer-lhe um contrato que não era de seu ramo, propondo que ele mexesse com cópia de chave, xerox ou aluguel de equipamentos de impressão.

Evandro, por não ter qualquer experiência nesse ramo, recusou a oferta.

Ele concluiu que a Samarco, na verdade, não pretendia contratar ninguém da cidade para os trabalhos de reparação. Essa recusa em contratar empresas locais, como a de Evandro, que já possuía a estrutura e os funcionários, aumentou a percepção de que as firmas contratadas talvez pudessem ter sido favorecidas de alguma forma.

O prefeito Elson Magnata sintetiza o sentimento de abandono, considerando que a Samarco não deixou um legado tangível no município. Para ele, uma obra como a ligação asfáltica entre Barra Longa e Ponte Nova – que encurtaria uma viagem de 60 para 23 km – faria a diferença real para a saúde, educação e economia local, mas ao invés de ligar Barra Longa às cidades vizinhas e tirar a cidade do isolamento, o legado foi um “elefante vermelho”.

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A Praça Lino Mol, principal área de lazer do barralonguense, está mais uma vez fechada para obras - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

A terceirização das responsabilidades

Uma outra reclamação trazida pelo prefeito Elson Magnata está relacionada à terceirização das responsabilidades por parte da Fundação Renova, em sua relação com a antiga administração do município. Segundo Elson, a Fundação tinha dificuldades em realizar obras na cidade, pois não contava com boa relação com a comunidade, por isso, diversos acordos foram estabelecidos com a antiga administração para a utilização do poder público local como agente de reparação. Magnata descreveu essa prática como um meio para as mineradoras "tirarem o corpo fora".

“Você não tem uma simples escola. Eles destruíram com a lama e não construíram nada no município”, desabafa Elson Magnata, que após 10 anos do rompimento da barragem, assinou o acordo da repactuação na esperança de conseguir atender as necessidades da população.

Em Barra Longa, município que foi um dos mais afetados pelos rejeitos da Samarco, as promessas de reconstrução das escolas se perderam entre repactuações, repasses e descumprimentos.
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O prefeito Elson Magnata, de Barra longa, despacha em uma sala improvisada no parque de exposições da cidade, pois a prefeitura, atingida pela lama, está atualmente em reforma - Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

Os 10 milhões terceirizados pela Samarco ao município hoje não existem mais e as obras, no entanto, não foram feitas. “Como diz o Fantástico, cadê o dinheiro que estava aqui? Não existe. Então, eu tenho todas essas obras públicas para poder fazer, que era de responsabilidade da Renova”, relata Magnata que enfrenta, em 2025, a superlotação da creche da cidade e a ausência de um local adequado para a Escola José de Vasconcelos Lanna, diretamente atingida pela lama, que tem suas aulas ministradas em um local improvisado. “Lá é um galpão, com divisórias, igual essa prefeitura provisória aqui embaixo, com os alunos sem local adequado até para brincar. Não tem nada, você fica preso lá dentro de uma gaiola. Não tem sentido”, descreve.

De todas as cidades atingidas pela Barragem de Fundão, Barra Longa foi a única que teve seu centro urbano diretamente engolido pelos rejeitos. Uma cidade, de pouco mais de 5 mil habitantes e área de quase 400 km², hoje segue ilhada, vivendo sob o efeito do isolamento causado pela falta de estrutura crônica que permaneceu mesmo após a tragédia e após o processo de reparação.

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A Igreja Matriz de São José de Botas está fechada há 8 anos - Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

A cidade tem Ponte Nova como polo principal de referência em saúde e educação. “Questão de saúde, educação para as escolas do nível superior, médico particular, médico do SUS, qualquer tipo de especialista, a vida do barralonguense é Ponte Nova", relata o prefeito.

Entre Barra Longa e Ponte Nova há um trecho de apenas 23 km de estrada de terra, que encurtaria consideravelmente o trajeto de 60 km de asfalto, mais comumente utilizado pela população.

O prefeito tem insistido na necessidade de asfaltar essa via e ampliar a interligação com cidades vizinhas, medida que, segundo ele, facilitaria tanto o acesso da população a serviços básicos, quanto o escoamento da produção local. Tal medida, no entanto, durante esses 10 anos foi negligenciada para dar espaço a famosa obra do Parque de Exposições, que foi construído pela Fundação Renova com uma verba de R$36 milhões.

A obra, apelidada de “elefante vermelho” por Magnata, não possui utilidade prática, não apenas por não comportar um grande evento, mas também por não servir para festas menores, devido à falta de estrutura e isolamento da cidade. “Eles gastaram 36 milhões aqui dentro. Hoje aqui cabem 4 mil pessoas. A Renova queria fazer muita construção. Não tem estacionamento, não tem banheiro público pra usar, não tem nada. Então as obras dela eram muito mal planejadas, ela queria fazer muito volume e fez as coisas tocadas”, desabafa o atual prefeito.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Barra Longa não é caminho para lugar nenhum. Para ir a Barra Longa, “tem que querer mesmo, você tem que vir pra cá e depois voltar tudo que você andou”, diz Magnata. O prefeito defende que o ideal para a cidade seria colocá-la dentro de um circuito com outros municípios, como Ponte Nova, Alvinópolis, Dom Silvério ou Rio Doce, todos a menos de 30 km de Barra Longa, porém em nenhum dos casos com vias asfaltadas.

“Então, nós temos quatro municípios aqui para a gente ter ligação, mas ninguém teve essa visão de interligar a nossa cidade”, lamenta o prefeito diante da realidade desse isolamento forçado, que prejudica principalmente o bem-estar da comunidade, que possui um polo hospitalar a 60 km de distância da sua própria casa, tornando a saúde um aspecto muito sensível para o barralonguense.

Se nós passarmos mal aqui agora, nós vamos demorar uma hora e vinte minutos pra chegar dentro do hospital. Sendo que você poderia estar meia hora dentro do hospital. Meia hora, 40 minutos, salvam muitas vidas
Elson Magnata, prefeito de Barra Longa

Convívio forçado e mudança social

Após o rompimento da barragem, a cidade que antes era marcada pelo vínculo comunitário, passou a abrigar um grande contingente de população flutuante, advinda dos trabalhadores das empresas terceirizadas pela Fundação Renova. Para Celso Xavier, empresário e morador da cidade, Barra Longa “praticamente perdeu o seu lazer (...) porque a praça ficou fechada muitos anos e o único lazer que a gente tinha em Barra Longa era a praça”. Além disso, Celso fala sobre a insegurança e o desaconchego em frequentar o polo central da cidade. “Por exemplo, pizzaria, barzinho que tinha lá e tal. Era muito frequentado pelo pessoal das empresas, então você chegava lá e não cabia de gente e você não conhecia ninguém”, lamenta.

Após anos de espera, a Praça Manoel Lino Mol, um dos principais espaços públicos de Barra Longa, está novamente em obras, fechada mais uma vez. Ao longo da última década, o local permaneceu mais fechado que aberto, em sucessivas obras.

Hoje a praça passa por mais um processo de revitalização conduzido pela Prefeitura, que divulgou nas redes sociais a promessa de transformar o local em um verdadeiro ponto de encontro e lazer para a comunidade.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

A notícia gerou grande repercussão entre os moradores, que expressaram nas redes sociais o quanto sentem falta do espaço. Comentários como: “Como faz falta!! Deus abençoe”, “A praça é o portal da cidade, está fazendo muita falta. Jesus abençoe e dê sabedoria à equipe” e “Barra Longa merece ter uma praça para os moradores”, evidenciam o anseio da população por um ambiente que há anos representa não apenas um ponto de convivência, mas também um símbolo afetivo da cidade.

O legado da reparação

A chegada dessa população flutuante não alterou apenas a rotina social da cidade. O impacto também se fez sentir nos serviços públicos, especialmente na saúde. O pequeno município, que antes do desastre tinha estrutura para atender cerca de seis mil habitantes, viu sua demanda crescer rapidamente. “Nós não tínhamos um ponto de atendimento 24 horas. Ele funcionava de sete da manhã até, no máximo, dez da noite”, conta o prefeito Elson Magnata. “Depois que teve o rompimento, fomos obrigados a manter o serviço em tempo integral”.

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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

Durante os anos mais intensos das obras e ações emergenciais, a Samarco financiou o funcionamento do pronto atendimento, cobrindo os custos extras gerados pela ampliação dos turnos e pelo aumento da população. Mas, segundo o prefeito, esse apoio foi interrompido há cerca de quatro anos. “Eles bancaram durante o processo dos funcionários, mas já tem quatro anos que não mandam nenhum centavo pra cá pra poder estancar a ferida que eles fizeram”.

Sem o repasse da mineradora, a conta ficou para o município, que segundo o prefeito, vive basicamente do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Ainda assim, não há como reduzir o serviço.

Ela era 12 horas, passou ‘pra’ 24. Se eu fechar, a população me cobraria. Mas também não consigo fechar porque ainda existe população flutuante da Samarco aqui dentro.
Elson Magnata, prefeito de Barra Longa
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O histórico Hotel Xavier foi fortemente atingido pela lama e só agora passa por restaurações - Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Mesmo uma década após o rompimento, o fluxo de pessoas de fora continua. Trabalhadores ligados à mineradora e a empresas contratadas seguem frequentando a cidade, pressionando uma rede de saúde já frágil. “Tem funcionários aqui, de fora, que fazem parte do nosso dia a dia, inclusive à noite, e o plantão tem que funcionar 24 horas”, completa o prefeito.

Sem empresas e sem indústrias, a economia local depende quase exclusivamente da Prefeitura. “Aqui tem pouco emprego, não tem empresa nenhuma ao redor. A empresa de Barra Longa chama-se Prefeitura”, resume Elson. “Eu como gestor jamais vou deixar uma família em situação vulnerável. Tenho que arrumar um jeito de colocar um salário mínimo dentro daquela casa ‘pra’ sobreviverem”.

Marcas que persistem

A ausência de oportunidades reflete também a lentidão da reconstrução. Muitas famílias ainda convivem com os impactos diretos da lama. “Aqui eu sei de casa que não foi reformada, eles fizeram um acordo e a pessoa teve que reformar por conta própria”, relata o empresário Celso. “Principalmente essa questão dos quintais, tem muito quintal com lama aí. A área de pastagem, de baixada, que é a melhor área, ficou tomada”, afirma.

As marcas da tragédia também se manifestam na insegurança cotidiana. A poucos quilômetros dali, a barragem de Germano, da mineradora Samarco, continua sendo motivo de apreensão. “Se chegar de novo outra lama, lá não temos pra onde sair”, afirma o prefeito. O sentimento é reforçado pela precariedade do plano de evacuação elaborado pela Samarco. “Quando a Samarco fez o mapeamento de rota de fuga, você pode olhar: está no sentido pra baixo, numa estrada sem pavimentação. Você já viu um negócio desse? O planejamento deles era zero”, critica.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

A cada período de chuvas, o medo reaparece. Placas enferrujadas apontam caminhos que talvez não levem à segurança, a rota de fuga é uma estrada de terra e muitos moradores vivem em constante vigilância. Atentos a todo toque de sirene que, todo dia 10, às 10 horas da manhã, ecoa como teste, mas faz toda a população relembrar a tragédia que arrebatou o município naquela madrugada de 6 de novembro. Para o prefeito, a pergunta que ecoa pela comunidade é simples e direta: “Se a barragem romper no período de chuva, o que pode acontecer?”

Andréia explica que o som, que antes não fazia parte da rotina, virou um lembrete permanente do medo.

A gente tem as plaquinhas de rota de fuga, a gente tem a sirene que toca todo dia dez, e tem gente que ainda sente essa sirene tocando, sabe? Essa hora é hora de você parar um pouquinho e rezar, porque... essa sirene, a gente não tinha isso anteriormente. E no início, ficava assim: ‘ah, estourou mais uma’. Tem sempre aqueles que gostam de fazer um pouco de terrorismo mesmo, né? ‘Nossa, estourou mais uma, agora vem, agora vem...’
Andréia Azedo, comerciante de Barra Longa

Apesar do cenário, o prefeito Elson tenta projetar um novo horizonte para Barra Longa com os recursos vindos da repactuação. “Eu vou fazer, pelo menos, 40% do que a Renova tinha que fazer em dez anos. Vou gastar 40 milhões em quatro”, afirma. “Eles gastaram 36 milhões só nesse parque, e eu tô tentando fazer 30% do que eles deixaram pra trás. Nós vamos fazer essa escola, que eles não fizeram. Vamos fazer uma creche, que eles também não fizeram. Um centro de convivência para as crianças fazerem o para-casa, e, no mínimo, uns 15 a 20 quilômetros de asfalto na zona rural para o escoamento da produção de leite e o transporte escolar”, promete.

Em meio à lama, que ainda cobre quintais, e à incerteza que paira sobre o futuro, Barra Longa tenta se reconstruir pelas próprias mãos. Mas, como reconhece o prefeito, o legado que deveria ter sido deixado pela reparação ainda não existe.

Vocês (Samarco) são culpados, vocês não fizeram o legado de Barra Longa. Não adianta me encher os olhos achando que eu tô bem aqui nesse parque. Não estou.
Elson Magnata, prefeito de Barra Longa

Novo Acordo de Mariana

Assinado no dia 25 de outubro e homologado no dia 5 de novembro de 2024, o Novo Acordo de Mariana foi uma repactuação entre as mineradoras e o poder público, e o valor global é de R$172 bilhões, prometendo ser um marco na reparação. No entanto, para muitos atingidos, o que chegou foi um misto de ceticismo, medo da perda de direitos e incerteza sobre o futuro.

O governo federal comemorou o acordo de repactuação, uma vez que se trata do maior acordo ambiental do mundo, em termos de valores financeiros. O que estava na mesa durante a gestão Bolsonaro, era um acordo de “apenas” R$70 bilhões, menos da metade do valor definido no novo acordo. Além disso, a costura propõe a participação da comunidade atingida através da criação de conselhos e a gestão compartilhada com as ATI’s de cada território, muito diferente do acordo de Brumadinho, onde não havia previsão de participação popular no empenho dos R$37,7 bilhões acordados em 2021.

A repactuação trouxe consigo um "montante em dinheiro, uma verba que é destinada a programas de retomada econômica, embora não se saiba ainda quais programas serão". Do ponto de vista político, o acordo é visto como uma vitória de proporções globais. O líder dos garimpeiros, Sérgio Papagaio, considera que ter conseguido um acordo de R$172 bilhões é "algo inimaginável, admirável e de se bater palmas", especialmente ao enfrentar "as maiores mineradoras do mundo e governos estrangeiros".

Contudo, a comerciante Andreia Ferreira expressa a desconfiança que permeia a comunidade: "Não sei se, com esse acordo agora que foi feito, a Samarco vai sair fora, né?". Ela acredita que, no final, "a Samarco vai passar o dinheiro e vai se isentar".

Para quem viveu a espera pelo reassentamento e reparação, o novo acordo pode trazer consequências severas.

Eliene Geralda dos Santos, diretora da escola de Bento Rodrigues, criticou a natureza da repactuação, que, segundo ela, "veio com um monte de coisa que só tira os benefícios do atingido".
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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Uma das maiores preocupações levantadas é a perda das garantias de construção: com a repactuação, "acabou a garantia das casas", afirma. Eliene descreveu a situação após o acordo: "Do jeito que fez, agora é sua responsabilidade, né? Então a repactuação, por exemplo, ela veio com um monte de coisa que só tira os benefícios do atingido".

A frustração também se manifesta na dificuldade em acessar os benefícios. O domador de cavalos Dirlei José Madalena, cuja casa em Barretos foi destruída, resumiu o impacto da repactuação em sua vida: "Ficou a mesma coisa. Não melhorou e pode pode ser que só piore. (...) A repactuação [é] algo que exige provar as coisas e que obriga a arrumar uma grande quantidade de documentos para ter acesso a um benefício".

As comunidades se ressentem da falta de critério e da percepção de que a indenização não foi distribuída de forma equitativa. Dirlei lamenta que muitos que não tiveram perdas significativas “receberam altos valores”, enquanto os diretamente afetados lutam por migalhas.

Gente que não perdeu nada recebe aí 3 milhão e eu que fui atingido? Aquele lá em cima lá que não perdeu nada, pega lá 3 milhão de indenização. Tudo deles é o contrário
Dirlei José Madalena, domador de cavalos de Barretos, distrito de Barra Longa

A repactuação também estabeleceu prazos de pagamento que geram incerteza e revolta, especialmente em relação à multa por atraso na entrega das obras. "Tem até 17 anos para pagar isso", afirma Eliene, e defende que a população deveria ter mais urgência em receber a indenização, ou não vai nem ver esse dinheiro, em função de idade avançada, por exemplo.

Há pagamentos que serão feitos durante 20 anos. E os idosos? Não só idosos, que hoje para você morrer basta estar vivo... Mas e para aqueles que já tá lá com 70, 80 anos, vai pagar as coisas durante 20 anos?", questiona
Luciene Alves, comerciante no Novo Bento Rodrigues

Ela é mais uma que acredita que a repactuação "não beneficiou atingidos" e que os acordos que existiam na época da Fundação Renova eram melhores.

O dilema dos municípios

Para os gestores públicos, o acordo impôs obrigações difíceis.

O prefeito de Barra Longa, Elson Magnata, relatou que o município receberá R$366 milhões, pagos em 20 anos. No entanto, ele se sentiu "praticamente obrigado a assinar" o acordo para garantir a reconstrução de espaços públicos essenciais, como a praça e a Igreja Matriz.

Em fevereiro deste ano, Elson participou de uma reunião do Consórcio Público para Defesa e Revitalização do Rio Doce (Coridoce) em Mariana que reuniu prefeitos e representantes municipais de mais de 20 das 49 cidades atingidas pela barragem. À época, 12 municípios tinham assinado o acordo, que para ser homologado, obriga as prefeituras a abrirem mão de ações judiciais (em curso e futuras) sobre o rompimento da barragem.

Acontece que o prazo de pagamento (20 anos) e o valor oferecido às prefeituras (cerca de 4% do total do acordo), não agradou boa parte dos prefeitos que acreditam poder, eventualmente, acessar um valor maior e em menor prazo em uma eventual condenação das mineradoras no tribunal de Londres.

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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

À época, Magnata, disse ter “vergonha de ser prefeito de uma cidade que não tem nem igreja, não tem uma escolinha”, em referência à Igreja Matriz de São José de Botas, fechada há 8 anos, e à Escola Municipal José de Vasconcelos Lanna, interditada desde o rompimento da barragem. O desejo do prefeito não era assinar o acordo, pois acreditava ser um valor injusto em relação às perdas do município. Porém, a realidade de um município que se sustenta essencialmente do FPM, bateu à porta e o gestor optou pela garantia dos R$366 milhões do acordo.

Magnata enfatizou que, embora o dinheiro pareça substancial, ele é "todo carimbado" e só pode ser usado em "novos projetos" e obras. O prefeito critica que esse recurso não pode ser usado para cobrir os custos decorrentes de atividades de grupos sociais (como Quilombolas ou Congadeiros), cujos programas foram criados, estimulados e depois abandonados pela Renova. "O dinheiro da repactuação não pode pagar isso. Entendeu? Eles não entendem porque eles acham que o dinheiro, os R$366 milhões, os R$18 milhões que o município já recebeu tá comendo no caixa. Não pode fazer! Não posso! A verdade é essa", declara Magnata, concluindo que a repactuação "não vai mudar a história de Barra Longa", mas vai ajudar o município a sobreviver por 20 anos.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Outro ponto de frustração municipal é o caso de Gesteira, que ainda não saiu do papel. Por outro lado, o prefeito demonstra alívio, pois ao menos os valores ficaram protegidos, pois estavam no Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG) e não no caixa da prefeitura.

Em Mariana, a decisão do Prefeito Juliano Duarte foi diferente. Ele não assinou o acordo e abriu mão de R$1 bilhão que o município de Mariana teria por direito para aguardar uma decisão da ação movida na Inglaterra. “Eu acompanhei o julgamento e nós podemos acompanhar a seriedade que é a justiça inglesa. Lá não tem essas questões de recursos, de atrasos, não. Lá a justiça tem data para encerrar o julgamento e nós temos a plena confiança que nós sairemos com uma decisão favorável aos municípios”, declarou Juliano à época.

A organização dos garimpeiros

Em meio às dificuldades, o grupo dos garimpeiros conseguiu um resultado notável dentro do processo da repactuação, garantindo R$809 milhões. Sérgio Papagaio atribuiu essa conquista à organização e à produção de documentos técnicos, que comprovaram a condição de comunidade tradicional. "Nós tivemos, na repactuação, R$809 milhões para os garimpeiros. E ainda tem R$8,5 bi que nós podemos acessar com projetos", comemora.

Ele contrasta o sucesso dos garimpeiros com outras classes que "não produziram documento, não escreveram nada porque acharam que teve um rompimento... e a reparação virá por si", e que acabaram ficando com os déficits da reparação, considerando que "a justiça não acode quem dorme".

Por que que outras classes que eu não vou dizer o nome não receberam? Porque não tinha um papel, não tinha um bilhete assim escrito num papel rosa: Nós somos atingidos!
Sérgio Papagaio, líder dos garimpeiros e editor-chefe do Jornal A Sirene
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Foto: Larissa Antunes/Agência Primaz

A Renova, por sua vez, dificultava o processo. Papagaio relata que a causa tomou conta de sua vida, levando-o a “virar atingido". Ele compara a sua trajetória à de São José, que, em Barra Longa, virou "São José Desabrigado" e teve que "aprender a ser atingido". Ele conta que não tira férias há dez anos, pois as pessoas ligam o tempo todo. Ele lamenta que a reparação seja desgastante e que é preciso "solidificar o ser humano [a alma]", antes de reconstruir a cidade.

Em seu relato, Papagaio enfatiza que a reparação, em geral, tem sido mal executada. Ele a chama de "gambiarra" e "desastre da reparação", explicando que tudo que a Renova fazia gerava mais problemas. Ele descreve a engenharia da reparação como falha, mencionando um momento em que engenheiros se chocaram ao ouvir a palavra "merdalhada" (termo que usou para descrever o esgoto e a sujeira que corria pelas ruas após intervenções), enquanto ele e a comunidade viviam essa realidade diariamente: "Essa merdalhada que o senhor não conseguiu ouvir, eu tô vivendo ela, eu e a minha comunidade", replicou ao engenheiro.

Ele conclui que a Renova não foi criada para reparar o crime, mas sim para "atender os interesses da mineração" e "empurrar com a barriga". A repactuação, nesse contexto, pode ser encarada como a melhor opção possível, dado o cenário político e judicial adverso, mas, para ele, o processo de reparação em si ainda carrega as marcas da injustiça e da desorganização.

Uma questão de educação

Por quase uma década, o tempo da infância ficou em suspenso nos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. As escolas, que antes eram o coração pulsante das comunidades, se tornaram lembranças. A lama que desceu do Fundão, em 2015, arrastou não apenas paredes e cadernos, mas também o sentido de pertencimento de gerações inteiras.

Por muitos anos, as crianças de Bento e Paracatu estudaram longe de casa. Foi na escola Dom Luciano, no Bairro Rosário, em Mariana, que três escolas se tornaram uma só. Os meninos que antes dividiam o recreio no mesmo pátio, agora se reencontravam em corredores desconhecidos, sob olhares curiosos. Era ali que as crianças atingidas passaram a ser chamadas de “os da lama”. E também era ali, longe de tudo, que eles conheciam que o medo era capaz de paralisar uma sala inteira.

Elas tinham medo de tudo. Um dia, a caixa d’água começou a vazar e escorreu por baixo das mesas. Foi um desespero. Parecia que tudo ia acontecer de novo.
Eliene Geralda dos Santos Almeida, diretora da Escola Municipal de Bento Rodrigues.
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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Diferente da escola de Paracatu, que se desvinculou da Escola Dom Luciano e foi transferida para outro imóvel logo no início de 2016, a comunidade escolar de Bento Rodrigues permaneceu por muito mais tempo coabitando os corredores da escola do bairro Rosário. Nos primeiros meses após o rompimento da barragem de Fundão, o espaço se tornou abrigo, escola e símbolo da convivência forçada entre realidades distintas, a dos atingidos e a dos que os recebiam.

Com o passar do tempo, porém, a atenção exacerbada voltada aos atingidos começou a incomodar. A presença constante da mídia, de visitantes e de ações por conveniência de solidariedade, muitas vezes mais voltadas à visibilidade do que à escuta, gerava desconforto entre alunos e funcionários da escola anfitriã. “Hoje em dia a pessoa quer doar, mas quer ficar aparecendo, né? Tudo que faz tem que postar”, critica a diretora.

No Natal, Eliene relembra um caso emblemático: “Desceu um helicóptero com o Papai Noel. Sem ninguém saber de nada, sabe? Nós não sabíamos de nada. Desceu, deu panetone para os meninos tudo, deu presente. Mas os meninos tudo só de... de Bento, de Bento”, conta, lembrando que os alunos da Escola Dom Luciano não receberam presentes do Papai Noel voador.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

A boa intenção se misturava à espetacularização da tragédia. A rotina escolar, já abalada pela convivência entre realidades diferentes, começou a ser afetada pelo incômodo crescente. “Porque ‘tava’ incomodando, né? Acaba que incomoda. Chegou a incomodar a ponto de ter um período que a comunidade de lá começou a fazer abaixo-assinado pra gente sair de lá, né?”, relembra Eliene.

Essa exposição constante também aprofundou o processo doloroso da estigmatização dos atingidos.

Ser “de Bento” passou a carregar o peso de ser “os da lama”. Que, por sua vez, deixou de ser apenas uma ofensa entre crianças e passou a marcar identidades, colando-se à forma como aqueles meninos e meninas se reconheciam.

Com o passar do tempo, cada comunidade seguiu seu rumo. As escolas de Bento e Paracatu se mudaram para sedes provisórias diferentes na cidade, mas, perdeu-se o propósito original das escolas em dar voz à comunidade e fortalecer o vínculo com o território.

Em Mariana, soterrado pelo rejeito, pela estigmatização e pela distância, o que antes era um espaço de pertencimento e construção coletiva tornou-se, por um tempo, um lugar de incertezas. “Eu tenho essa visão de que a gente não tinha objetivo, porque a gente estava trabalhando… para quem? Para qual comunidade?”, questionava Angélica.

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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

A reconstrução das comunidades escolares

Foi nesse vazio que professores e alunos tentaram reconstruir algum sentido de comunidade. Em 2016, nasceu o projeto Bento – Presente, Passado e Futuro, uma tentativa de retomar as histórias interrompidas. Eliene se recorda de uma aluna, então no ensino fundamental, que escreveu sobre o desejo simples de voltar a andar de bicicleta pelas ruas de Bento. “Ela me dizia que queria que o Bento ficasse pronto logo, pra voltar a pedalar.

Eu conversei com a mãe dela e pedi ‘pra’ levar as crianças ‘pra’ outro distrito, ‘pra’ elas aproveitarem um pouco a infância. Porque a gente sabia que a infância delas ia acabar e o Bento não ia estar pronto.
Eliene Geralda dos Santos Almeida, diretora da Escola Municipal de Bento Rodrigues

A reconstrução da escola de Bento só foi concluída em 3 de agosto de 2023, oito anos depois do rompimento. Quando as portas finalmente se abriram, muitas das crianças que estudaram nas escolas improvisadas já eram adolescentes. A maioria sequer voltou. E a escola, renascida, teve de aprender a ser novamente o centro de uma comunidade que ainda não se sente pertencente àquele território.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

A infância que antes acontecia ao ar livre, hoje é marcada pelo medo dos pais em deixarem os filhos saírem, por desconhecerem o local e as pessoas que o frequentam. “E aqui ainda é um lugar perigoso pra sair, né? Não é um lugarzinho que você pode liberar menino. Porque é muito ônibus que chegava aqui de manhã com o trabalhador. E são trabalhadoras que você não conhece, né? Uma coisa, você tem um pedreiro lá na sua casa que você sabe de quem que ele é filho, você sabe do que que ele é capaz, né? Você conhece a pessoa”, relata a diretora.

Por outro lado, em Paracatu de Baixo, a espera foi ainda mais longa. A nova escola ficou pronta apenas em fevereiro deste ano, após quase dez anos de espera. Tempo suficiente para que o distrito se esvaziasse. O prédio novo, amplo e bonito, abriga hoje apenas oito alunos.

Nosso desafio é esse: fazer com que eles não faltem. Hoje mesmo, Angélica ficou sem a turma do 1° ano, as três crianças faltaram.
Cíntia Peixoto, pedagoga da Escola de Paracatu
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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

Angélica vê, no número reduzido de alunos, o reflexo de uma comunidade que ainda não conseguiu se refazer. “Essa demora em reconstruir fez muita gente desistir. As famílias foram ficando, arrumaram a vida em outros lugares. Quando o Paracatu ficou pronto, quase ninguém voltou”. E completa que naquele princípio “tava todo mundo doido pra voltar, ninguém cogitava a possibilidade de ficar em Mariana, ninguém cogitava”, explica.

Ainda assim, a esperança na resistência persiste. O que move a comunidade é o desejo de ver as novas gerações seguirem em frente. “A gente quer fazer esse Paracatu dar certo, por causa dessas crianças que estão aqui. Elas são donas desse lugar. E, se a gente resistiu até agora, por que não vai dar certo daqui pra frente?”, questiona Angélica, cujo sentimento também ecoa no Novo Bento Rodrigues.

A gente tem esse papel, essa responsabilidade. A gente sabe que essas crianças e esses adolescentes precisam estar bem preparados ‘pra’ construir a história desse novo Bento. O Novo Bento vai ter uma história, mas agora vai ser contada por eles.
Eliene Geralda dos Santos Almeida, diretora da Escola Municipal de Bento Rodrigues

O dilema da urbanização

Com a reconstrução de Paracatu, a comunidade se depara com um novo dilema: afinal, a nova localidade é rural ou urbana? A dúvida, que parece burocrática, tem consequências diretas no funcionamento da escola e nas políticas que a amparam.

Embora os moradores mantenham modos de vida essencialmente rurais, a nova estrutura física do distrito, com tratamento de esgoto e urbanização planejada, levou a prefeitura a classificá-lo como zona urbana. A definição, no entanto, não é consenso entre os órgãos públicos, nem para a população. “Então, assim, mas é tudo muito dentro do padrão, e eu acho que isso descaracterizou um pouco a comunidade. Esqueceram que é uma comunidade, né?”, declara Cintia.

“Para a Superintendência [de ensino], por exemplo, ‘pro’ Estado, a gente é rural. Então, a gente não sabe, né?”, explica a professora Angélica. A incerteza tem impacto direto no Projeto Político Pedagógico (PPP) da instituição e na forma como a escola é reconhecida administrativamente. “A gente começou essa discussão ‘pra’ ver se chega num consenso entre a Secretaria Municipal de Educação e o Estado, porque a gente tem todos esses detalhes pra resolver. Tá sendo complicado também”.

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Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

O contraste entre a vida no campo e a infraestrutura urbana desafia o próprio sentido de pertencimento da comunidade. “Lá em Mariana, a gente era urbana, porque recebia os meninos que estavam no urbano. Agora aqui, os modos de vida de todo mundo não são urbanos”, afirma Angélica.

Mais do que uma questão técnica, o impasse reflete a transição simbólica de um povo que, após perder o território de origem, agora precisa redefinir também a própria identidade, entre o campo que ficou para trás e um distrito, que ainda não se sente pertencente.

Mesmo diante da dispersão e das dificuldades, os moradores de Paracatu de Baixo têm encontrado formas de manter viva a rotina comunitária que sempre os caracterizou. A tecnologia, algo de uso esporádico na vida rural de antes, tornou-se aliada essencial para preservar laços e tradições.

Desde o rompimento da barragem, em 2015, os grupos de WhatsApp passaram a cumprir papéis que iam muito além da comunicação: servem para organizar reuniões, divulgar informações sobre o processo de reassentamento e, até hoje, garantem a continuidade das atividades religiosas e culturais. “O coral da igreja, por exemplo, a gente organiza todo pelo WhatsApp. Enviamos os áudios das músicas para os ensaios, combinamos os leitores e os participantes das missas”, conta Angélica Peixoto.

Até mesmo a festa junina da escola precisou se reinventar. Com poucos alunos, fica difícil ter uma quadrilha, por isso agora existe o “quadrilhão”, onde pais, professoras, alunos e demais visitantes participam e dançam juntos. “A gente adaptou os passos ‘pra’ que todo mundo pudesse participar, porque hoje é mais difícil formar grupos grandes. O importante é manter a tradição e o encontro das pessoas”, acrescenta.

Trabalho que ficou no passado

Mas, enquanto as iniciativas culturais resistem, o mesmo não pode ser dito sobre o trabalho. Paracatu ainda não encontrou formas de sustentar economicamente seus moradores. “Aqui, o pessoal trabalhava no cafezal, prestava serviço pros fazendeiros da região. Quando a empresa comprou todo o terreno, acabou também com esse local de trabalho. E não tem como a pessoa ficar aqui sem trabalhar”, explica Angélica.

Sem oportunidades, muitos moradores mantêm casas no reassentamento, mas vivem e trabalham fora, retornando apenas nos fins de semana. “Muita gente desistiu de morar aqui porque não tem como sobreviver só com o que a gente tem”, diz.

Na tentativa de reverter esse cenário, a comunidade tem buscado alternativas locais. “A gente pensou numa horta comunitária, mas precisa de parceria. Se for só ‘pra’ subsistência, não resolve. Tem que ser algo que gere renda, que consiga tirar o produto daqui”, afirma Angélica.

A escola também tenta fazer parte dessa reconstrução econômica. A pedagoga Cintia, conta que um projeto com plantas medicinais foi criado como forma de unir aprendizado, cultura e possibilidade de sustento. “Aqui do lado, a gente fez um herbário, com o que chamamos de ‘caminho sensorial’. A ideia é que as pessoas levem pra casa, façam chás, produtos aromatizados, e consigam, aos poucos, gerar alguma renda”, explica.

Mesmo assim, tudo ainda está no campo das ideias. “Claro que temos algo concreto, mas falta apoio, meios ‘pra’ que isso caminhe. A gente precisa de alguém que queira investir, acreditar nesse projeto”, diz Cíntia.

A esperança se mistura à crítica. Para Angélica, a lentidão na aplicação dos recursos da repactuação e a falta de políticas efetivas para a retomada econômica revelam um descompasso entre promessas e realidade.

Não é dar um curso de empreendedorismo e achar que a pessoa vai aprender a lidar com uma horta e tirar dali o sustento. A gente sabe que não é assim que as coisas funcionam. Esse é outro problema que a gente enfrenta.
Angélica Peixoto, professora da Escola Municipal de Paracatu

Hoje, tanto em Novo Bento quanto em Paracatu, as escolas erguem-se como símbolos de resistência. Não apenas prédios, mas tentativas de devolver às crianças o direito de crescer sem medo, de renascer o sentimento de pertencimento com a terra e o desejo de reescrever uma história que a lama tentou apagar. E talvez seja assim que a educação, aos poucos, comece a devolver o tempo que a tragédia tomou.

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Foto: Joyce Campolina/Agência Primaz

O tempo de espera e o futuro incerto

Esta reportagem especial nos levou a uma jornada profunda ao longo do Rio Gualaxo do Norte, desde o distrito de Bento Rodrigues, percorrendo as áreas diretamente atingidas até Barra Longa. Além de visitar os novos reassentamentos de Novo Bento Rodrigues e Paracatu.

Nossas observações ao longo do último mês revelaram uma realidade complexa, marcada pela construção de novas estruturas físicas, do processo de reparação das margens dos rios e plantio de matas ciliares. Ao mesmo tempo, há fragilidade na reconstrução social e econômica das comunidades.

Dez anos após o rompimento, os distritos de Novo Bento Rodrigues e Paracatu já estão de pé, com obras próximas do final com casas que para alguns representam uma melhora nas condições de moradia, mas que para outros simbolizam a perda da união e da sociabilidade rural que existia anteriormente.

Em Paracatu, por exemplo, a pedagoga Cíntia Peixoto observou que a escola se sentiu "descolada de uma comunidade" ao longo da última década, pois os alunos se espalharam por Mariana, um problema que, mesmo com o retorno, persiste devido à falta de trabalho para manter as pessoas ligadas ao novo distrito e o número reduzido de alunos na escola (8).

Em Barra Longa, a paisagem ostenta marcas de lama ainda visíveis em paredes, quintais e baixadas próximas ao rio e um senso de comunidade afetado pela desigualdade das reparações e pela presença temporária das empresas, que deixaram um "calote" com o comércio local.

O custo humano desses anos é inegável. Muitos atingidos, como a diretora da Escola Municipal de Bento Rodrigues, Eliene Geraldo dos Santos, relataram o estigma de serem rotulados como "os atingidos do Bento" e a dor de lidar com a injustiça de processos de indenização que parecem arbitrários, sem critérios claros para todos.

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O Rio Gualaxo do Norte, por onde desceu o rejeito há 10 anos, deságua no Rio Do Carmo em Barra Longa - Foto: Lui Pereira/Agência Primaz

Para a população idosa e aqueles que perderam tudo, a espera de quase uma década e as incertezas sobre o futuro (como o prazo de 20 anos para o pagamento de certas indenizações) pesam imensamente, gerando problemas sociais, ansiedade e aumento na procura por cuidados médicos, sobretudo os psiquiátricos. O líder dos garimpeiros, Sérgio Papagaio defende que tudo isso é uma "repetição de ideias" onde a reparação se tornou uma "gambiarra", incapaz de conseguir promover uma reparação justa e integral.

Apesar do cansaço e da tristeza, permeia a determinação de reconstruir. Em Novo Bento, Darlisa das Graças Eusébio Azevedo, que perdeu seu bar e passou a noite isolada no dia da tragédia, hoje se esforça para manter seu restaurante funcionando, apesar da preocupação com o futuro quando os trabalhadores das empresas forem embora. A cozinheira Joelma Souza mantém sua esperança no futuro, enquanto planeja a inauguração de seu novo restaurante. A professora Angélica Peixoto, de Paracatu, vê nas crianças a "resistência" e a esperança de construir uma nova história para o distrito.

A realidade pós-desastre é de um recomeço lento, desigual e doloroso, onde a resiliência dos atingidos se manifesta na luta contínua por um futuro que honre as vidas perdidas e as histórias interrompidas, contrapondo-se à percepção de uma reparação muitas vezes focada mais em números do que na verdadeira restauração da dignidade e da vida comunitária.

O que diz a Samarco?

Sobre o processo de reparação, ser “exaustivo”, “injusto” e marcado por desigualdades e falta de transparência, a Samarco alega que “a Fundação Renova foi uma iniciativa inédita criada em março de 2016 para conduzir a reparação e compensação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão. À época, sua constituição representou a solução possível diante da complexidade do cenário, ao estabelecer uma fundação privada e autônoma responsável por executar os 42 programas de reparação, abrangendo ações socioeconômicas, socioambientais e de políticas públicas previstas no Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC)”.

Além disso, a Samarco informa que “ao longo de sua trajetória, a Fundação Renova cumpriu papel na execução das ações de reparação e compensação. Até setembro de 2024, foram aportados R$38 bilhões por meio da Fundação. Deste total, R$18 bilhões destinados a mais de 447,3 mil acordos em indenizações e auxílios financeiros”.

A Samarco ainda diz que “após o Novo Acordo do Rio Doce, assumiu a tarefa de executar a reparação integral e definitiva e tem atuado em diversas frentes neste primeiro ano após a homologação do acordo pelo STF. Esse processo tem avançado, resultando até setembro de 2025, em mais de R$30,4 bilhões destinados à reparação. Com isso, os recursos aplicados na reparação já somam mais de R$68,4 bilhões, considerando os R$38 bilhões executados pela Fundação Renova – que está em processo de extinção”.

Já sobre os critérios técnicos utilizados pela Fundação Renova para definir as indenizações e reparação dos danos, diante da sensação de que a distribuição de benefícios parecia um "sorteio" e portanto desigual para alguns atingidos, a Samarco informa que “a Fundação Renova está em processo de liquidação. A execução da reparação integral e definitiva está sendo coordenada, desde a homologação do Novo Acordo do Rio Doce, pela Samarco. O processo indenizatório faz parte do Novo Acordo e busca reparar de forma definitiva todas aquelas pessoas, desde que cumprissem os critérios de elegibilidade para ingresso nas portas indenizatórias”.

Além disso, “as indenizações individuais e auxílios financeiros pagos no âmbito do Novo Acordo já somam R$14 bilhões, beneficiando mais de 288 mil pessoas, até setembro de 2025. Esses valores pagos pela Samarco no Novo Acordo se somam aos cerca de R$18,1 bilhões a 447,3 mil acordos destinados pela Fundação Renova até setembro de 2024”.

Sobre a percepção generalizada de que a Fundação Renova teria sido criada para dificultar o pagamento e criar conflitos internos nas comunidades, atuando para ‘jogar vizinho contra vizinho’, a Samarco defende que “a Fundação Renova cumpriu um papel importante ao longo dos anos, promovendo repasse de mais de R$38 bilhões em recursos indenizatórios, para ações de reparação, bem como ações ambientais e de reassentamento de famílias. Com o Novo Acordo, a Samarco se tornou responsável pela execução das ações”.

Já sobre a demora em indenizar bens perdidos, como foi o caso dos estoques de comerciantes de Barra Longa, pagos seis anos após o rompimento e sem a devida correção inflacionária, a Samarco alega que “cada programa conduzido pela Fundação Renova à época seguiu regras e critérios específicos, definidos em conjunto com os órgãos públicos e instâncias de governança responsáveis pela reparação. As análises foram realizadas individualmente, levando em conta as particularidades de cada caso e a documentação apresentada por cada requerente para comprovação dos danos”.

Ainda sobre as indenizações, a Samarco lembra que “o Novo Acordo do Rio Doce, homologado em 2024, foi justamente estruturado para aperfeiçoar e acelerar o processo de indenizações e compensações, trazendo critérios mais claros e prazos definidos, de forma a garantir maior agilidade, transparência e justiça para todos no processo reparatório definitivo”.

Em resposta às denúncias de que profissionais contratados teriam utilizado documentos de atingidos para “roubar direitos” e cortar benefícios anteriormente acordados, como teria sido o caso do não fornecimento de silagem para gado em propriedades rurais, a Samarco informa que “possui canais (Canal de Ética, Ouvidoria, Central de Relacionamento), abertos para que todas as pessoas possam realizar denúncias e reclamações de qualquer natureza. Informa também que preza pela confidencialidade, imparcialidade, contraditório, ampla defesa e transparência no processo. Toda e qualquer denúncia recebida e qualificada, é investigada e tratada”.

Sobre a garantia de qualidade dos materiais e da execução das obras nos reassentamentos, diante das denúncias de que as construções foram “mal feitas”; e apresentam problemas estruturais, como trincas em muros e a necessidade constante de reparos, a Samarco esclarece que “as comunidades participaram ativamente do planejamento das áreas comuns e o projeto de cada casa foi feito de acordo com o desejo de cada família, inclusive a escolha dos materiais de acabamento, considerando as necessidades e expectativas”.

Além disso, de acordo com a mineradora, “as obras seguem projetos aprovados, fiscalização técnica e metas pactuadas no Novo Acordo, com auditoria e governança. Conforme previsto no Acordo, a Samarco continuará prestando suporte técnico, a título de garantia, para eventuais reparos nos imóveis, decorrentes de vícios construtivos, pelo prazo de até cinco anos após a entrega das chaves. Tanto em Novo Bento Rodrigues como em Paracatu, estão em funcionamento os Centros de Atendimentos aos Moradores, que oferecem apoio para demandas relacionadas às moradias”.

Sobre as medidas definitivas tomadas em Barra Longa para reparar os danos estruturais em casas antigas causados pelo tráfego de caminhões e máquinas pesadas, a mineradora alega que “uma decisão judicial anterior ao Novo Acordo, determinou o pagamento de indenização por danos estruturais efetivamente comprovados em virtude das obras. Os pagamentos seguem ocorrendo. Após o Acordo, foram pagos R$40,6 milhões a 465 pessoas. Denúncias pontuais são tratadas por vistorias técnicas e frentes corretivas previstas no Acordo”.

Sobre a garantia dos imóveis dos reassentamentos, “conforme previsto no Novo Acordo do Rio Doce, a Samarco continuará prestando suporte técnico, a título de garantia, para eventuais reparos nos imóveis, decorrentes de vícios construtivos, pelo prazo de até cinco anos após a entrega das chaves. Tanto em Novo Bento Rodrigues como em Paracatu, estão em funcionamento os Centros de Atendimentos aos Moradores, que oferecem apoio para demandas relacionadas às moradias”.

Já sobre o prazo de pagamento das indenizações por atraso de obras, considerado demorado pelos atingidos, a Samarco alega que “o Novo Acordo do Rio Doce estabelece repasse de recursos destinados à compensação financeira por questões relacionadas aos reassentamentos coletivos de Novo Bento Rodrigues e Paracatu, reassentamentos familiares e reconstruções originárias, pelo atraso na conclusão das obras, falhas no abastecimento de água e outros problemas identificados. A destinação desse valor será operacionalizada pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), e a Samarco cumpre rigorosamente o cronograma de repasses ao MPMG, em conformidade com o previsto no acordo”.

Sobre a sustentabilidade econômica dos distritos, comércios e geração de renda, a Samarco diz atuar “de forma ativa para o aprimoramento das comunidades dos novos distritos, oferecendo apoio e capacitação para estruturar suas atividades. Essas atividades têm ajudado a construir novas oportunidades de trabalho e de negócios, de forma a assegurar renda para membros dessas comunidades. Os distritos de Novo Bento Rodrigues e Paracatu contam com 57 estabelecimentos comerciais, atuando em áreas de alimentação, vestuário, agropecuária, comércio geral, saúde/beleza, acessórios, serviços Pet e oficina mecânica e borracharia, entre outros”.

Já sobre a responsabilidade sobre os calotes expressivos aplicados por empresas terceirizadas no comércio de Barra Longa, “a Samarco reconhece a relevância das preocupações apresentadas por comerciantes e prestadores de serviços de Barra Longa. No que se refere a contratos firmados entre empresas privadas, estes são regidos por responsabilidades próprias, cabendo exclusivamente às partes que realizaram o acordo comercial a condução de seus compromissos. Ainda assim, a Samarco mantém-se disponível para dialogar e apoiar as lideranças locais, sempre dentro dos limites de suas atribuições legais, reafirmando o compromisso da empresa com o desenvolvimento e a reparação da região”.

Em relação à alegação do prefeito Elson Magnata de que o Parque de Exposições de Barra Longa seria um “Elefante Vermelho”, a mineradora informa que “o processo de construção do Parque de exposições foi requerido pela Prefeitura Municipal de Barra Longa, e contou com a participação da comunidade através de escutas promovida pela equipe de diálogo social”.

Sobre a segurança da Barragem de Germano, rotas de fuga e o medo dos moradores de Barra Longa de um segundo rompimento, a Samarco diz que “desde o rompimento da barragem de fundão em 2015 a empresa fortaleceu o Sistema Integrado de Segurança, que inclui o Centro de Monitoramento e Inspeção (CMI) e conta, atualmente, com mais de 2.000 equipamentos que operam 24 horas por dia, sete dias por semana. Complementando esse sistema, os Centros de Operações Integradas (COI) monitoram continuamente todas as etapas da produção — da extração ao controle ambiental — promovendo maior eficiência operacional e prevenção de riscos. Conta, ainda, com auditorias externas independentes e aplica todas as medidas de gestão de segurança conforme as melhores práticas de segurança geotécnicas”.

Além disso, “a empresa tem avançado na descaracterização da sua barragem alteada a montante e inativa (Barragem de Germano), que está em estágio avançado de obras e será concluída antes do prazo estabelecido (2029). Na Cava do Germano as obras de descaracterização foram concluídas em 2023, antes do prazo acordado. Todas as estruturas geotécnicas da Samarco estão estáveis, conforme atestado por auditorias e certificações legais”.

Sobre o prazo de conclusão das obras de descaracterização da Barragem de Germano, a empresa “tem avançado na descaracterização da sua barragem alteada a montante e inativa (Barragem de Germano), que está em estágio avançado de obras e será concluída antes do prazo estabelecido (2029). Na Cava do Germano as obras de descaracterização foram concluídas em 2023, antes do prazo acordado. Todas as estruturas geotécnicas da Samarco estão estáveis, conforme atestado por auditorias e certificações legais”. A mineradora não informou quando as sirenes deixarão de ser acionadas todos os meses.

Já sobre a destruição da casa de Dirlei, a Samarco informou que “não comenta casos individuais”.